Em um piscar de olhos, as linhas de frente se estenderam centenas de quilômetros para o sul, como se o conflito tivesse voltado aos seus primeiros anos
Foto: Monsef Memari/Xinhua
Em um piscar de olhos, as linhas de frente se estenderam centenas de quilômetros para o sul, como se o conflito tivesse voltado aos seus primeiros anos
Agência Xinhua Brasil - 26/12/2024 10:13:13 | Foto: Monsef Memari/Xinhua
Na Síria, a estabilidade oscila incessantemente de forma perigosa. Seguimos em frente, não porque não temos mais medo, mas porque não temos outra escolha.
Por Hummam Sheikh Ali
Damasco, 19 dez (Xinhua) -- Depois de quase 14 anos relatando o conflito sírio, pensei que eu tinha me acostumado à imprevisibilidade da guerra, até que o evento de 27 de novembro me lembrou que a normalidade na Síria continua ilusória como sempre.
Naquela manhã, uma aliança militante liderada pelo grupo Hayat Tahrir al-Sham (HTS) lançou uma ofensiva massiva no interior do norte de Alepo. No começo, parecia ser apenas mais um surto no longo e amargo conflito, um dos muitos que cobri ao longo dos anos.
No entanto, na noite de 29 de novembro, ficou claro que não era uma operação militar comum. A aliança militante invadiu a cidade de Alepo, retomando não apenas seus antigos redutos, mas também áreas que nunca haviam ocupado. Em um piscar de olhos, as linhas de frente se estenderam centenas de quilômetros para o sul, como se o conflito tivesse voltado aos seus primeiros anos.
Os eventos que se desenrolavam deram uma sensação de déjà vu. Em 2013 e 2014, durante os dois primeiros anos da guerra civil, me aventurei nas linhas de frente, passando cuidadosamente por vidros quebrados e vergalhões retorcidos. Vi bairros reduzidos a ruínas, senti o odor de metal carbonizado, sangue e poeira, e vi casas destruídas.
Com o tempo, aprendi a diferenciar calibres de armas apenas pelo som. Essas experiências deixaram cicatrizes profundas, me tirando a calma e trazendo medo de que os horrores do passado poderiam voltar.
O avanço do HTS e seus aliados no final de novembro surpreendeu a maioria das pessoas. Após uma breve pausa depois da queda de Alepo, o grupo militante avançou para o sul, capturando território com velocidade surpreendente. Os redutos do governo caíram um por um, primeiro Hama, depois Homs e em poucos dias, eles estavam às portas de Damasco.
Quando surgiram rumores de que o grupo militante estava mais perto do que imaginavam, eu estava com amigos em Damasco, tentando manter a aparência de normalidade. Mas por dentro, eu era só cansaço. Pensei em meus pais, na minha casa, nas ruas e nas lojas que eu conhecia. As garantias de “fortificações sólidas” do governo ao redor da capital pouco acalmaram meu desconforto.
Nas primeiras horas da manhã de 8 de dezembro, a tranquilidade da cidade foi abalada pelo som de tiros. Em poucas horas, Damasco estava cheia de rumores, roubos e caos. Apesar da crescente ansiedade que eu sentia, continuei como repórter. Olhando pela janela, vi homens armados que não reconheci, caminhões militares abandonados e rifles e uniformes descartados por todas as ruas. A confusão tomou conta.
Meu corpo pediu ajuda, acordei no dia seguinte sem conseguir engolir e fui ao hospital. As ruas pareciam surreais, cheias de cartuchos de bala e protegidas por homens nervosos e armados. No entanto, dentro do hospital, os médicos conversavam enquanto comiam doces e até me pediam para tirar fotos deles, como se estivessem se apegando a qualquer fio de rotina em meio à turbulência.
Em poucos dias, surpreendentemente, Damasco começou a recuperar seu ritmo. Os mercados reabriram, as pessoas se aventuraram e a normalidade, se é que podemos chamá-la assim, assumiu uma nova forma.
O barulho constante dos hospitais voltou e os produtos essenciais retornaram às prateleiras, com preços mais altos. Combustível e pão, antes racionados, voltaram a ficar disponíveis, também mais caros. Permanecemos em um estado de fluxo, presos entre o alívio de uma calma frágil e o receio sobre o que poderia acontecer amanhã.
As pessoas estão tentando encontrar seu lugar nessa paisagem alterada, pisando em cartuchos de bala, respirando o ar fresco de dezembro e se esforçando para recuperar uma sensação de normalidade. A memória do medo continua, mas também uma determinação obstinada de se adaptar e seguir em frente.
Na Síria, a estabilidade oscila incessantemente de forma perigosa. Seguimos em frente, não porque não temos mais medo, mas porque não temos outra escolha.
No entanto, em meio à frágil calma, o barulho dos caças israelenses mirando em locais militares por todo o país é um lembrete constante de que a paz continua sendo uma ilusão.
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