Por Henrique Pizzolato; o novo golpe: Como o lawfare substituiu o fuzil na América Latina
Por Henrique Pizzolato; o novo golpe: Como o lawfare substituiu o fuzil na América Latina

Por Henrique Pizzolato - 08/07/2025 20:45:20 | Foto: Divulgação

O lawfare substitui os tanques como arma para destruir lideranças populares e sabotar a democracia na América Latina.

Na década de 1960, a América Latina assistiu ao avanço da repressão pelas baionetas e coturnos. O Brasil foi o ponto de partida de uma engrenagem golpista que se espalhou como praga pela região, resultando em ditaduras, censura, tortura, mortes e atraso. Hoje, o roteiro é outro — mas o objetivo permanece o mesmo: desorganizar a democracia, destruir lideranças populares e impedir projetos de desenvolvimento soberano.

Se antes os tanques tomavam as ruas, agora o sistema de justiça ocupa esse papel. O lawfare, uso político e estratégico do aparato judicial, tornou-se a arma preferida das elites neoliberais para neutralizar governos progressistas e figuras públicas com base popular. O caso de Cristina Kirchner na Argentina é mais uma página desse livro sujo que já conhecemos. Trata-se de uma repetição perversa do que fizeram com Lula no Brasil, Rafael Correa no Equador, Evo Morales na Bolívia, Pedro Castillo no Peru e Daniel Jadue no Chile.

No caso argentino, o escândalo do Lago Escondido revelou a engrenagem em ação. Em 2022, uma viagem secreta à Patagônia, bancada por empresários da mídia e frequentada por juízes federais, procuradores e membros do governo de direita, escancarou os bastidores da manipulação judicial. Entre os convidados estavam nomes como Julián Ercolini, juiz diretamente envolvido no processo contra Cristina, e executivos do Grupo Clarín, conglomerado midiático símbolo do poder econômico que há décadas tenta silenciar vozes críticas. As mensagens vazadas mostraram como os participantes buscavam coordenar versões para ocultar o encontro. Um conluio entre toga, poder e imprensa — a essência do lawfare.

Esse episódio não é isolado. Ele se encaixa em um padrão claro de perseguição judicial e midiática que sempre recai sobre líderes que ousam contrariar os interesses do mercado financeiro, da oligarquia rural, das grandes corporações e de seus representantes políticos. A acusação de corrupção, muitas vezes sem provas concretas, virou pretexto para destruir biografias, inviabilizar candidaturas e impedir a continuidade de governos que ousam apostar na redistribuição de renda, soberania econômica e integração regional.

Cristina denunciou o conluio. Lula, anos antes, também havia alertado que a “justiça” estava sendo usada como instrumento de exceção. Ambos foram tratados como inimigos a serem eliminados, não adversários políticos legítimos. No Equador, Rafael Correa vive exilado após uma série de processos arbitrários. Evo Morales foi forçado a deixar o poder após um golpe respaldado por setores do judiciário e das Forças Armadas. No Chile, Daniel Jadue enfrenta um cerco jurídico que claramente ultrapassa os limites da legalidade. No Peru, Castillo foi destituído e preso após sucessivos ataques do Judiciário e do Congresso.

O lawfare não é só uma estratégia jurídica. É um projeto político. Um método de disciplinamento das forças populares. Uma maneira de impedir que a América Latina retome o caminho de um desenvolvimento autônomo, integrado e centrado no bem-estar de sua gente. Trata-se de um desespero do neoliberalismo, que, incapaz de oferecer soluções para as crises que criou, precisa destruir qualquer alternativa real.

É por isso que os alertas se multiplicam. O Papa Francisco, em um de seus gestos mais corajosos, já chamou os povos da América Latina a desenvolverem mecanismos de detecção e combate ao lawfare. Não se trata de proteger políticos, mas sim de proteger a democracia. O lawfare mata projetos de futuro. Ele impede que governos escolhidos pelo povo governem. Ele transforma a justiça em instrumento de opressão e a mídia em tribunal de exceção.

Enquanto as investigações sobre o Lago Escondido seguem estagnadas, protegidas por um sistema que se blinda para manter seus privilégios, a Argentina vê sua democracia ferida. A mesma ferida aberta no Brasil com a prisão de Lula, na Bolívia com o golpe contra Evo, no Equador com o exílio de Correa. Uma ferida que não cicatriza, porque continua sendo aberta todos os dias por decisões judiciais enviesadas, campanhas midiáticas tóxicas e acordos de bastidores entre poderosos.

A América Latina não pode aceitar essa nova forma de dominação. Se antes enfrentamos ditadores, hoje devemos enfrentar juízes parciais, procuradores militantes e jornalistas que não informam, mas conspiram. A luta contra o lawfare é, hoje, uma luta democrática. É preciso punir os culpados, proteger as vítimas e resgatar o sentido republicano da justiça.

Se não o fizermos, seguiremos assistindo — com ares de déjà vu — à destruição de cada tentativa de libertação nacional. Não com fuzis, mas com canetas. Não com prisões físicas, mas com sentenças forjadas. Não com golpes militares, mas com golpes judiciais.

O método mudou. O objetivo, não. E é por isso que precisamos resistir.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a nossa opinião.