Arqueóloga Niède Guidon, que deu fama mundial à pré-história do Brasil, morre aos 92 anos
Belo Horizonte, Mg (uol/folhapress) - 04/06/2025 16:10:05 | Foto: Niéde Guidon, arqueóloga
A arqueóloga Niède Guidon, que morreu nesta quarta-feira (04) aos 92 anos, foi uma das grandes responsáveis pela criação do Parque Nacional da Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, no sertão do Piauí.
Niède ouviu falar em São Raimundo Nonato pela primeira vez em 1963, quando trabalhava no Museu Paulista da USP. À época, ela organizava uma exposição com fotografias de pinturas pré-históricas encontradas em Lagoa Santa (MG), consideradas as únicas do tipo no Brasil.
Em uma visita do então prefeito de Petrolina (PE), Niède soube de desenhos rupestres no sertão do Piauí. O prefeito disse que na região havia "uns desenhos de caboclos" parecidos com os da exposição. As imagens mostravam um abrigo sobre rochas na Serra da Capivara, no Piauí.
Apesar de animada para conhecer aquele local, os planos de Niède foram atrasados pela ditadura militar de 1964. A arqueóloga exilou-se na França e viveu em Paris por oito anos.
Só em 1973 Niède conseguiu visitar São Raimundo Nonato pela primeira vez. A partir daí, a pesquisadora passou a lutar pela preservação do patrimônio histórico presente naquela região.
Desde então, Niède liderou diversas escavações. Ela e sua equipe descobriram centenas de sítios arqueológicos, com pinturas e gravuras rupestres datadas de até 12 mil anos de idade.
Mas um dos seus grandes desafios para essa preservação foi a pobreza. "Nos primeiros anos aqui [na Serra da Capivara], percebemos que a pobreza que reinava na região nunca ia permitir proteger o legado pré-histórico do parque. Uma pessoa com fome só pensa como vai resolver o problema imediato", contou Guidon em entrevista de 2023.
Os sertanejos que ali estavam viviam da agricultura de subsistência e não tinham acesso a serviços básicos, como energia elétrica, educação e saúde. Por isso, paralelamente às pesquisas arqueológicas, Niède e sua equipe mobilizavam autoridades, instituições e políticos para voltarem os olhos à região.
Em 1979, o Governo Federal criou o Parque Nacional da Serra da Capivara. Com mais de 100 mil hectares, a área abrange os municípios de São Raimundo Nonato, João Costa, Brejo do Piauí e Coronel José Dias.
Entretanto, a arqueóloga sabia que apenas delimitar a área do parque não seria suficiente. Também era preciso fazer um trabalho social no cotidiano dos moradores da região.
Em 1986, Niède criou a Fumdham (Fundação Museu do Homem Americano), entidade administrativa do parque. Desde o início, a fundação teve como objetivo o desenvolvimento socioeconômico e cultural da região. O plano de manejo do parque incluiu a integração da população local às ações de preservação.
Com a criação do parque, algumas famílias tiveram que deixar suas casas. Niède fez o possível para realocá-las e encarou como uma batalha pessoal o direito à moradia, embora enfrentasse obstáculos políticos. Algumas pessoas conseguiram melhorar de vida com as novas oportunidades, apesar de outros terem perdido suas terras e precisarem deixar a região.
Desde a chegada da "doutora", como Niède é conhecida por alí, muita coisa avançou em São Raimundo Nonato. Uma série de demandas se concretizaram, como a construção de uma fábrica de cerâmica, restaurantes, hotéis e pousadas, o desenvolvimento da apicultura na região e o aeroporto do município.
"Sempre digo que só fiz meu trabalho e agora vejo a região mudando rapidamente, crescendo com uma importante participação da população local. [...] Ainda falta, mas, me parece que agora é sem retorno. A Serra da Capivara está no mapa do mundo", disse Niède Guidon.
Arqueóloga Niède Guidon, que deu fama mundial à pré-história do Brasil, morre aos 92 anos
DANIELA MARTINS, SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A arqueóloga Niède Guidon morreu nesta quarta-feira (4) aos 92 anos. Formada em história natural pela USP (Universidade de São Paulo) e doutora pela Universidade de Paris, ela virou de ponta-cabeça as pesquisas sobre a ocupação humana nas Américas.
A teoria de Clóvis, tradicionalmente aceita, afirma que o homem chegou ao continente americano durante a época em que o estreito de Bering esteve congelado, criando uma passagem entre a Sibéria e o Alasca, há cerca de 13 mil anos. Teria descido desde a América do Norte até ocupar, mais tardiamente, as terras da América do Sul.
As pesquisas de Guidon, no entanto, apontam vestígios da presença humana no Piauí que datam de 60 mil anos ou mais. Ela assegurava que os indícios poderiam chegar a 105 mil anos na serra da Capivara.
Walter Neves, um dos nomes mais respeitados da arqueologia brasileira, passou anos questionando as descobertas de Guidon. Em 2010, ele finalmente escreveu que estava 99,9% convencido da consistência delas. Observando a atitude da pesquisadora quanto às críticas que recebia, Neves disse: "A felicidade demanda coragem. E, se ela tem um nome, deve ser Niède Guidon."
De acordo com a pesquisadora, os arqueólogos europeus nunca tiveram grandes questões para admitir as datações que ela sugeria e sempre souberam que o trabalho desenvolvido no Piauí era sério e cuidadoso, tanto que concordaram em financiar os estudos.
Não foi fácil chegar a essas conclusões e encarar o ceticismo da comunidade científica norte-americana e mesmo dentro do Brasil. Também não foi simples chegar ao local remoto e isolado da caatinga em que se encontra o material arqueológico, no interior do Piauí. Niède não desistiu.
O legado de sua determinação vai além da mudança de paradigma nas teorias arqueológicas. Ela deixa ao país o Parque Nacional Serra da Capivara, incluído desde 1991 na lista de Patrimônio da Humanidade da Unesco, e a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), entidade responsável pelo estudo do acervo natural e cultural do parque.
Foi em 1963, quando trabalhava no Museu Paulista da USP, que Guidon ouviu falar em um sítio com pinturas rupestres no interior do Piauí. Tentou chegar até o local dirigindo um Fusca, mas as dificuldades de acesso foram intransponíveis.
Ela partiu para a França no ano seguinte, fugindo da ditadura militar, e só em 1970, quando voltou ao Brasil para uma pesquisa sobre populações indígenas de Goiás, conseguiu passar pelo local para finalmente ver de perto as pinturas que não haviam saído de sua cabeça.
O que viu foi algo novo, muito diferente dos padrões conhecidos e estudados no restante do país. Niède sabia que era um achado importante. Pediu ajuda ao governo francês e organizou uma missão de pesquisa em 1973.
Daí em diante, passou a se dividir entre Paris, onde lecionava na Escola de Estudos Avançados em Ciências, e São Raimundo Nonato (a 530 km de Teresina), juntando seus alunos franceses com os colegas da USP e formando grupos interdisciplinares com diversas instituições de pesquisa para estudar a região.
Para a pesquisadora, os esqueletos encontrados no Piauí, assim como os encontrados em Minas Gerais na década de 1970, apresentam características morfológicas mais próximas de povos africanos e aborígenes do que de povos asiático.
A ideia do povoamento através do estreito de Bering é sólida, existe compatibilidade genética entre indígenas americanos e povos de etnia asiática. Mas ela não é suficiente para explicar tudo.
Outro caminho é a hipótese transoceânica, segundo a qual povos saídos da Polinésia e da Austrália teriam cruzado os oceanos, que tinham níveis mais baixos, e chegado diretamente ao litoral americano em períodos anteriores ao que se supunha.
Tudo isso sugere que a ocupação do continente americano pode não ter tido uma única origem ou via de acesso, tese que encontra cada vez mais espaço entre os pesquisadores. O trabalho de Niède apontou que os caminhos podem ser ainda mais antigos e desconhecidos.
Mais tarde, descobertas de vestígios -ainda não comprovadas- de 120 mil anos no Chile e de 130 mil anos na Califórnia acabaram por mostrar que a tese dela tinha fundamento. É uma história que ainda aguarda para ser totalmente decifrada e contada.
O Parque Nacional Serra da Capivara foi criado pelo governo brasileiro em 1979. Niède sempre lutou contra o isolamento e o abandono do local. Acreditava que facilitar o acesso ao parque seria a garantia de sua preservação.
A arqueóloga esperou anos pela construção de um aeroporto que pudesse viabilizar a visitação turística, criou projetos de integração e sustentabilidade com as comunidades carentes da região, como uma fábrica de cerâmica, lutou por verbas e funcionários para manter o parque aberto e protegido das queimadas, da caça e do vandalismo.
Colecionou desafetos entre a classe política por suas constantes críticas e demandas e chegou a usar recursos pessoais para pagar salários e impostos atrasados. Catalogou 1.354 sítios arqueológicos dentro da área do parque para serem conservados e estudados, dos quais 200 podem receber visitantes.
As mudanças sociais ocasionadas pela criação do parque também não foram uma unanimidade entre os moradores do entorno. Com a desapropriação de terras, muitas comunidades que plantavam lavouras de subsistência e viviam da caça foram removidas para as cidades, tendo seu modo de vida completamente alterado.
Foi o caso dos habitantes da comunidade do Zabelê, hoje já assentados, que chegaram a mendigar pelas ruas de São Raimundo Nonato. Muitos jamais entenderam que a desapropriação era feita pelo governo federal -Niède levou a culpa pelos transtornos.
Quando lhe perguntavam sobre as dificuldades de ser mulher e tocar um trabalho tão grande no interior do Piauí, ainda na década de 1970 e em uma sociedade muito patriarcal, Niède respondia que jamais se sentiu diferente de qualquer homem e que esse tipo de coisa estaria mais na cabeça das pessoas, mas não na dela.
Niède Guidon nasceu em Jaú, interior de São Paulo, em 12 de março de 1933. A ascendência francesa vinha de um avô. Ela nunca se casou e não deixa filhos, tendo optado por dedicar sua vida pessoal e acadêmica aos estudos na serra da Capivara.
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