Falar de chocolate não é só sobre o conteúdo em si, mas também sobre o que e quem tocamos ao compartilhá-lo
por thais Ferreira - Portal Bdf - 25/04/2025 16:29:16 | Foto: “E quando um chocolate, escuro, com aroma e sabor de cacau, não foi um artigo de luxo?” - Yeremia Ganda/Pexels
Escrever após um feriado de Páscoa é um tanto desafiador. Digo desafiador, pois já escrevi sobre a tradição da comida baiana em nossa Semana Santa, bem como sobre a cultura de comer peixe. Tirando esses dois temas, o que me sobrou? O chocolate. No dia 11 de abril deste ano, a BBC News Brasil veiculou uma notícia que me chamou um pouco a atenção. O título era o seguinte: “Precisamos de chocolate sem cacau?”.
A longa reportagem tem, em seu início, a descrição de percepções sensoriais das ausências que se instauram ao abrir um pacote de chocolate. Não tem cheiro nem sabor de chocolate. Adicionadas gorduras hidrogenadas e açúcares infinitos, o chocolate desse ano teve tudo, menos cacau. E, pasme, o mercado europeu já começou a procura por alternativas que barateiem a produção dessa paixão internacional. Sementes de girassol, fava, feijões e muitas coisas mais fazem parte deste catálogo de possibilidades. No Brasil, o “usurpador” é o cupuaçu.
O aumento extravagante no valor do cacau, que em 2024, chegou a subir 300%, está relacionado às mudanças climáticas nas plantações da África Ocidental — a Costa do Marfim é o principal produtor de cacau do mundo — e ao abandono dos agricultores, que, entre os trabalhadores mais pobres do planeta, estão optando por laborar nas minas ilegais de ouro. O déficit de 500 mil toneladas de cacau no mercado aponta para uma forte tendência do chocolate se tornar um item de luxo nos próximos anos, diz o CEO da italiana Foreverland. Diante dessas informações, me peguei pensando: “E quando um chocolate, escuro, com aroma e sabor de cacau, não foi um artigo de luxo?”. Você, que adora chocolate e presta sempre atenção nos preços das coisas, há de convir que uma barrinha de marcas consagradas ou daquelas embutidas de “gratiluz” sempre custou caro.
Ouvi e li muita gente criticando essa atitude mercadológica de substituições para o barateamento dos derivados do cacau. “Foi a manteiga, a bebida láctea e, agora, o cacau”. “Isso implica em mais adição de açúcar e maior ultraprocessamento industrial”. “É melhor nem comer”. “É preciso um boicote a esses produtos”. Poderia me estender nas imposições de regras, mas vou me conter. Acho que o breve relato de um acontecimento poderá muito bem trazer um contraponto para aqueles que situam suas críticas apenas em questões de saudabilidade dos alimentos.
Sábado, um dia antes do Domingo de Ramos, estava na fila de um mercado popular daqui de Salvador. Em minha frente, havia um senhor que vestia calças compridas com alguns respingos de água sanitária na barra; tênis preto; e uma camisa gola polo listrada e um pouco gasta. Ele segurava três caixas de bombons Garoto (desses cheios de açúcar e gordura hidrogenada, inimigos da saúde humana). Na sua vez de passar, ele as empilhou cuidadosamente no caixa e falou: “Vou tirar uma dessas aqui para baixar um pouco o preço”. Saiu com uma das caixas na mão, e retornou com ela. “Pensando bem, vou levar. É bom que amanhã as crianças acordam e cada uma fica com o seu. Vão brincar juntas, sem brigar. Pode passar, moça”. A moça do caixa sorriu para ele, e eu continuei atenta à situação.
Esse acontecimento é bom para pensar acerca do lugar social que o chocolate ganhou. Não é só sobre o conteúdo em si, mas também sobre o que e quem tocamos ao compartilhá-lo. Apesar de estarmos vivendo “no tempo das catástrofes”, como bem coloca a filósofa Isabelle Stengers, ainda precisamos de chocolate sem cacau.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Editado por: Lorena Andrade
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