Sobre Macau como “Plataforma de intercâmbio cultural entre a China e Países de Língua Portuguesa”: passado, presente e futuro

Macau serviu de berço para a sinologia ocidental a partir do período Wanli da dinastia Ming.

Sobre Macau como “Plataforma de intercâmbio cultural entre a China e Países de Língua Portuguesa”: passado, presente e futuro
Sobre Macau como “Plataforma de intercâmbio cultural entre a China e Países de Língua Portuguesa”: passado, presente e futuro

Foto:  Diário do Povo Online    

Macau serviu de berço para a sinologia ocidental a partir do período Wanli da dinastia Ming.

Giorgio Sinedino* - Diário Do Povo Online     - 20/12/2024 16:23:05 | Foto:  Diário do Povo Online    

Neste momento em que Macau comemora os 25 anos de seu Retorno à Pátria, nunca é sobejo reconsiderar o que tem sido realizado nesta cidade em prol dos intercâmbios culturais entre a China e os Países de Língua Portuguesa. De fato, desde há mais de 450 anos, Macau vem exercendo o papel de ponte para intercâmbios culturais entre a China e o Ocidente. Em diferentes contextos históricos, Macau serviu de base para construir elos humanos entre essas duas civilizações que, até então, tinham permanecido sem contatos diretos e sistemáticos. É notável, e admirável, que esse processo foi marcado pela ausência de conflitos e até de rivalidades. Isso não só pode ser descrito como meritório, mas também como modelar, possivelmente remetendo à situação de Macau como melting pot de elementos ocidentais que vieram a enriquecer as suas origens e tradições chinesas. Nesse sentido, os últimos 25 anos podem ser descritos como de sublimação de tal herança, preservando e desenvolvendo o que se construiu nos séculos precedentes.

Macau serviu de berço para a sinologia ocidental a partir do período Wanli da dinastia Ming. Nunca se deve esquecer que a recepção positiva do pensamento chinês no Iluminismo ocidental é fruto de uma planta cujas sementes foram plantadas nesta cidade. Figuras maiores como Leibniz e Voltaire tiveram acesso ao pensamento chinês, embora não dominassem a língua, nem nunca tivessem tido a oportunidade de visitarem em pessoa a China de sua época. Apesar de que o conhecimento deles fosse de segunda mão, puderam basear-se em traduções e textos de qualidade, legados pelas primeiras gerações de sinólogos, mormente membros da Companhia de Jesus. Foi em Macau que se produziram os primeiros dicionários e livros-textos europeus para aprendizagem de Chinês; aqui foram formados os primeiros sinólogos ocidentais a dominarem a língua e a tratarem a cultura chinesa como objeto de reflexão séria; daqui partiram várias missões com finalidade de conhecer a realidade chinesa, ilustradas pelas figuras de Adam Schall e Matteo Ricci. Como se sabe, o primeiro teve um papel fulcral na introdução dos “Estudos Ocidentais” neste país; o segundo notabilizou-se também por assumir o aprendizado chinês como meta pessoal. Mesmo que se admitam as limitações da leitura feita do pensamento clássico chinês nessa época, é preciso reconhecer que foi produto de uma tentativa rigorosa de se compreender as particularidades da China, baseada no respeito por sua civilização.

Ao longo da dinastia Qing, outro contributo relevante para o intercâmbio cultural entre China e Ocidente teve lugar aqui. As “Chapas Sínicas”, hoje parte do Projeto Memória do Mundo (UNESCO), registram o funcionamento do Yamen de Macau. Por um lado, isso testemunha a eficiência singular da burocracia chinesa – então objeto de grande interesse, e até admiração, do mundo ocidental. Por outro lado, as “Chapas Sínicas” atestam valores que a China hoje em dia reconhece como essenciais à sua cultura – a prevalência da governança civil, a resolução negociada de conflitos, a busca pragmática de finalidades estratégicas, etc. Nos milênios de história da civilização chinesa, as “Chapas Sínicas” representam uma experiência única e merecedora de mais ampla divulgação.

Ao longo do complexo século XX, não deixa de causar uma impressão profunda outro tipo de realização em prol dos intercâmbios culturais entre China e Ocidente. Em Macau, os chamados “Filhos da Terra”, laço humano entre as populações chinesas e portuguesas, distinguiram-se como os pioneiros da sinologia naquela língua ocidental. Tradutores como Luís Gonzaga Gomes e Pedro Nolasco da Silva ultrapassaram barreiras linguísticas para produzir conhecimentos de primeira mão sobre a China – inclusive sobre a cultura tradicional. Outros “Filhos da Terra” tornaram-se escritores, registrando em português as relações entre as diferentes comunidades de Macau, promovendo, nesse processo, uma interpretação da cultura chinesa. Nas últimas décadas do século XX, foi a vez de lusófonos recém-chegados a Macau, e simpatizantes da China, darem-se ao labor de estudar e traduzir algo da literatura tradicional. Mesmo que não dominassem o idioma como os “Filhos da Terra”, esses indivíduos puderam beneficiar-se da sua experiência da vida local para transmitir um pouco da diversidade e riqueza da China aos seus países.

Nos 25 anos desde o Retorno de Macau à Pátria, surge um novo momento da transmissão de saberes chineses aos países de língua portuguesa. Enquanto o que foi feito nos últimos séculos foi mérito de indivíduos ou grupos, agora há uma nova direção, de institucionalizar o papel desta cidade como uma plataforma de trocas culturais entre a China e os Países de Língua Portuguesa. Um resultado notável, sem precedentes, refere-se à formação de bilíngues. Com o fortalecimento do sistema universitário local, há cinco universidades com programas sólidos nessa área, titulando, anualmente, algumas centenas de graduados. Avançando além do estudo do idioma, parte dos professores e estudantes têm-se engajado na promoção da cultura chinesa, especialmente literatura, nos países de língua portuguesa – e vice-versa. Merece nota o fato de que as universidades têm se esforçado para criar parcerias com aqueles países, surgindo daí um conjunto de iniciativas frutíferas nos planos diplomático, acadêmico e humano.

Num contexto em que a China afirma que sua cultura “é chinesa e é do mundo”, fica claro o imperativo de que os profissionais envolvidos nos intercâmbios com os Países de Língua Portuguesa redobrem seus esforços para melhorar ainda mais a qualidade do trabalho feito em Macau. Um objetivo natural é o de continuar a apoiar tais países para construírem sua própria sinologia. Sem dúvida, isso passa por educar mais especialistas que tenham o português como língua materna, mas ainda, quem sabe, Macau poderia assumir um papel de articulação no campo das traduções e publicações sinológicas – clássicas e modernas – suprindo lacunas ainda existentes no sistema universitário dos Países de Língua Portuguesa como um todo. Considerando os interesses chineses, a história pregressa de Macau e a demanda dos países de língua portuguesa, não paira dúvida de que todas as condições, de tempo, de espaço e humanas estão presentes. Os 25 anos do Retorno à Pátria são uma circunstância propícia e alvissareira para que se reflita sobre tal questão, na esperança de que Macau possa aperfeiçoar o seu papel e colher mais frutos como ponte entre a China e os países de língua portuguesa.

*O autor é professor associado da Faculdade de Letras da Universidade de Macau.

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