Elisabetta Recine fala sobre valor da comida e os desafios para garantir segurança e soberania alimentar no Brasil
Foto: Para Recine, o Brasil precisa proteger seu mercado interno, diante do cenário internacional instável e das mudanças climáticas - Arquivo pessoal-Elisabetta Recine
Elisabetta Recine fala sobre valor da comida e os desafios para garantir segurança e soberania alimentar no Brasil
Leonardo Fernandes - Brasil De Fato | Brasília (df) - 04/02/2025 19:24:43 | Foto: Para Recine, o Brasil precisa proteger seu mercado interno, diante do cenário internacional instável e das mudanças climáticas - Arquivo pessoal-Elisabetta Recine
A alta no preço dos alimentos tem gerado preocupação do governo, e claro, de quem gasta a maior parte de seu orçamento para se alimentar. Nesse contexto, o Brasil de Fato conversou com Elisabetta Recine, nutricionista de formação e professora do departamento de Nutrição da Universidade de Brasília (UnB). Atualmente, ela é presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) pela segunda vez.
Recine também integra o Painel de Alto Nível de Especialistas do Comitê de Segurança Alimentar Mundial da Organização das Nações Unidas (ONU), o Grupo Temático Alimentação e Nutrição da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.
O Consea é um órgão colegiado, criado em 1993 e vinculado à Secretaria-Geral da Presidência da República. Ele reúne representantes do poder público e entidades da sociedade civil que têm a atribuição de coordenar os programas federais ligados à segurança alimentar e nutricional. Em janeiro de 2019, uma das primeiras medidas do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro foi acabar com o conselho, que só foi retomado em 2023, após a posse do atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva.
Confira a entrevista:
Brasil de Fato: Elisabetta, como o Consea percebe esse apelo que tem sido feito pelo presidente Lula aos ministros do governo, e quais são as medidas que estão sendo pensadas para reduzir os preços dos alimentos?
Elisabetta Recine: O Consea recebe com a prioridade, a urgência necessária para o tema. Se a gente olhar assim ao longo da dos anos de atuação do conselho, a questão do preço dos alimentos sempre foi uma questão acompanhada e prioritária dentro do conselho por motivos óbvios.
A gente sabe, por várias pesquisas – sejam pesquisas locais ou nacionais – que, principalmente nas famílias de menor renda, a compra dos alimentos ocupa uma parcela importante do orçamento familiar, do orçamento doméstico. Então, as famílias de menor renda já têm um conjunto de estratégias para fazer com que o seu orçamento dê conta e renda o máximo possível. E o alimento, a alimentação, por questões óbvias, vai ocupando uma grande parcela desse orçamento, porque é fundamental para a sobrevivência humana, para as condições de vida.
Agora, isso tem um certo limite, porque existem outros gastos que são importantes para as famílias, como o transporte, eventualmente a compra de medicamento, o aluguel etc. Então, por mais que as famílias estendam o quanto a alimentação ocupa no orçamento, isso tem um limite.
Se os alimentos aumentam de preço, as estratégias e a margem de manobra das famílias ficam comprometidas. Por isso, lidarmos com a questão dessas oscilações de preço dos alimentos é algo fundamental, porque isso está ligado diretamente a qualidade de vida, às condições de vida, pobreza e, consequentemente, o risco de insegurança alimentar.
Não acho que podemos chegar a patamares de gravidade, como situações de fome, como nós já vivemos, infelizmente, inúmeras vezes. Então é mais do que bem-vinda, não só a convocação do presidente, mas são bem-vindos os anúncios que ainda precisam ser feitos. E para além dos anúncios, as medidas começarem a ser implementadas.
Onde está o centro da problemática sobre o preço dos alimentos no Brasil?
É lógico que hoje o tema prioritário é a questão da inflação e o componente da alimentação na inflação. Se a gente olhar o comportamento dos alimentos, especificamente dentro do índice inflacionário, vai ver que os alimentos tiveram um aumento muito maior do que a média que é divulgada.
Primeiro, é importante ver que isso é recorrente. Em diferentes momentos e por diferentes fatores, os alimentos sempre são uma parte muito sensível do índice inflacionário. Porque há questões estruturais, do comportamento do preço dos alimentos, e outros elementos, como o cenário internacional, que a gente tem um certo controle, mas certamente não temos controle absoluto.
Então, a primeira coisa é lidar com as questões estruturais da precificação dos alimentos e com a própria questão de quais são os alimentos que são produzidos neste país. No Brasil, as informações, tanto por parte do governo quanto das organizações que atuam e representam camponeses, agricultores, produtores etc, é de que a gente tem, historicamente, uma perda da área de produção dos nossos alimentos básicos, que vão sendo paulatinamente substituídos pela produção de commodities.
Então a gente fica muito na dependência do que ainda resiste de produção de alimentos básicos, arroz, feijão e outros produtos, frutas, e na dependência do quanto a gente tem capacidade de produzir. Isso termina incentivando as importações. Por outro lado, se você depende de importação de alimento básico, você depende do mercado internacional e tudo o que configura as oscilações de preço no mercado internacional.
No mercado nacional, a gente lida cada vez mais com questões que antes eram imprevisíveis, como os eventos climáticos extremos. E mesmo que não haja uma total previsibilidade de quando eles vão acontecer, a gente já sabe que eles vão acontecer. Toda essa questão da produção de alimentos e das estratégias de abastecimento de alimentos precisa considerar essa variável, que já é uma variável presente e que infelizmente não vai sair do cenário.
São chuvas fora de hora, chuvas em quantidade absolutamente acima da média, secas, e tudo o que isso gera de consequências como, por exemplo, os grandes incêndios. Alguns provocados, mas outros como consequência do clima. Isso precisa estrar nossa carta de planejamento para a produção de alimentos, que aliás, dê conta do nosso abastecimento interno. E para isso, a gente precisa ter planos de safra que privilegiem alimentos básicos e a a gente precisa ampliar de uma maneira muito grande toda a nossa rede de abastecimento.
E aí quando eu falo da rede de abastecimento, eu quero destacar que a gente tem pesquisas que mostram que quando a rede de abastecimento fica só na responsabilidade do setor privado, ela vai se localizar onde o setor privado tem garantido retorno do seu investimento. Com isso, você tem imensas áreas nas regiões periféricas das grandes cidades e cidades de porte médio, onde a população está totalmente desabastecida ou está abastecida, principalmente, de alimentos que não são saudáveis.
Então é preciso ter uma indução da política pública que faça com que as feiras, os mercados de produtores, os sacolões, os mercados populares cheguem em todas as regiões das cidades.
O papel do Consea e a resposta do governo
Qual é o papel do Consea na avaliação e até elaboração de medidas e programas relacionados a esse tema?
Se você olhar, historicamente, o conselho atua em todo esse espectro, discutindo, propondo, defendendo uma ampliação da capacidade da produção da agricultura familiar, um apoio à transição agroecológica, ao controle dos agrotóxicos. O conselho tem uma luta histórica junto com os movimentos e organizações, e que finalmente foi atendido em 2024, que foi tanto a Política quanto o Plano de Abastecimento Alimentar, para que o Estado recupere a capacidade de fazer com que o abastecimento alimentar atenda a população brasileira como um todo e não só a grupos da nossa população.
Também dentro dessa lógica do abastecimento, a recuperação da capacidade do Estado brasileiro de contribuir para a regulação do mercado. Eu estou falando de estoques estratégicos de alimentos. A gente precisa recuperar nossa infraestrutura de armazenamento, mas também ter orçamento e estratégia operacional para que a gente de fato tenha uma política de estoques reguladores.
Acho que sempre foi necessário, mas talvez agora seja não só necessário, mas imprescindível que a gente atue já prevendo oscilações, já prevendo situações em que a questão do abastecimento alimentar vai estar em risco. Isso tem a ver com a nossa capacidade de produção, com a nossa capacidade de abastecer e com a nossa capacidade de garantir o acesso a nossa população.
Mas isso tem a ver também com a nossa capacidade de reagir ao cenário político internacional que se anuncia, de taxação, de mexer nas políticas de subsídios, de mexer até com as regras comerciais ou pelo menos de instalar uma instabilidade nesses processos. Então, de alguma maneira, o Brasil tem que olhar para dentro, precisa proteger o mercado interno e essa proteção vem com medidas que a gente tem plena capacidade de adotar.
Elisabetta Recine, com o presidente Lula e os ministros Wellington Dias (à esquerda), do Desenvolvimento Social, e Márcio Macedo (à direita), da Secretaria-Geral da Presidência / Ricardo Stuckert / PR
Em 2025, o governo lançou o Plano Nacional de Abastecimento, que está sob coordenação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA). O que avançou de lá para cá?
Muitas das medidas previstas do plano demandam não só a disponibilidade de orçamento, mas também de retomar, acelerar, ou mesmo iniciar processos. No caso, por exemplo, dos estoques, demandam infraestrutura. O Estado brasileiro tem armazéns sob sua responsabilidade, mas também demanda a contratação também de armazéns privados, porque é preciso produzir um processo de capilarização muito grande.
O plano foi lançado em meados do segundo semestre de 2024, nem todas as medidas são inéditas, já havia um processo de recuperação das instalações e existe um tempo previsto para a implantação, e para que esse sistema possa atingir sua capacidade plena.
Eu acho que é essa alta de preços e essa visibilidade que a questão da inflação dos alimentos tomou nas últimas semanas pode dar um impulso para que a gente adote uma outra velocidade diante da urgência. Não só essa urgência pontual, mas a gente está lidando com consequências ligadas às situações climáticas, a gente está lidando com o mercado internacional instável, então a gente precisa de medidas que lidem com situações como essa.
Eu me pergunto, por exemplo: será que, quando o nosso abastecimento interno está em risco, a gente deve incentivar exportações ou a gente deve privilegiar o consumo interno e a qualidade de vida da nossa população? Nada disso depende de um único ator, nem do governo, nem da sociedade brasileira. Mas são acordos que precisam ser feitos em nome do bem comum, em nome da nossa soberania e em nome da segurança alimentar e nutricional da nossa população. Então, há sim, que se estabelecer processos de diálogo em que as necessidades nacionais precisam de fato estarem no centro das discussões e das decisões.
Medidas ventiladas
O governo tem falado em taxar a importação de alguns produtos para promover a produção interna. Você avalia que essa é uma medida efetiva? E mais que isso, é uma medida pontual ou de médio, longo prazo?
A gente tem uma conjugação de situações estruturais com situações da conjuntura, e a gente tem um resultado que é o aumento do preço. Mas ele é multifatorial, não existe uma única solução de maneira nenhuma. É ilusório achar que uma medida vai resolver. Então a gente precisa olhar um conjunto de medidas que precisam ser tomadas para tentar minimizar uma situação atual. Mas nós também precisamos pensar nas consequências dessas medidas a médio e longo prazo.
A questão da taxa de importação de produtos que hoje estão sendo importantes na composição inflacionária, pode dar um alívio de curto, médio prazo, mas se a gente estiver importando alimentos que fazem parte da nossa cesta básica e que são produzidos internamente, é preciso pensar em como isso impacta a sobrevivência de quem produz esses alimentos no Brasil. Então, para isso, a gente tem que pensar num Plano Safra que talvez promova um aumento inédito da produção dos alimentos da nossa cesta básica. A gente acha que já teve uma certa melhoria do Plano Safra anterior, mas a gente precisa de um Plano Safra em 2025-2026 que promova a capacidade de produção, uma recuperação da área de plantio e, consequentemente, uma oferta adequada desses produtos para o nosso mercado interno, isso é muito importante.
Nesse sentido, eu acho que as medidas que são tomadas no nível da emergência aguda têm uma importância fundamental porque as pessoas precisam comprar alimentos hoje, não daqui meses ou anos. Mas a gente precisa aliar isso com medidas que reduzam as consequências também de médio prazo. Esse xadrez da história.
A gente tem capacidade produtiva, a gente tem famílias que produzem alimentos, a nossa agricultura familiar é importantíssima do ponto de vista econômico, do ponto de vista de abastecimento, mas ela precisa ter condições de produção e ela precisa ter condições de cumprir seu objetivo de origem. Ela está disponível, ela está disposta, mas o tempo todo ela luta contra a corrente, e isso é algo inadmissível.
Os grandes empresários que lucram sobre a alimentação também têm apresentado suas propostas. Então fica aquela pergunta: o que não deve ser feito nessa matéria?
Foi anunciada uma proposta, feita pelo setor privado de abastecimento, por exemplo, de alterar a data de validade dos produtos para batear os preços. Esse é o tipo de medida que, de fato, só vai contribuir para quem propôs a medida, e não para quem está sofrendo as consequências.
O prazo de validade dos produtos está alinhado aos regulamentos internacionais que já estão absolutamente instalados no Brasil e isso é uma vantagem nossa, um elemento de qualidade dos nossos produtos. Além do mais, esse tipo de proposta é mais uma manifestação do preconceito que vem com diferentes caras ao longo do tempo, como se a população de menor renda não tivesse direito aos padrões de qualidade que o restante da população tem.
Quer dizer, isso é uma cortina de fumaça que não resolve o problema e fragiliza medidas regulatórias, sanitárias, além de ser uma repaginação de um preconceito contra a pobreza. Então acho que a gente precisa ter muito cuidado com medidas como essa.
Edição: Thalita Pires
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