Zezé decidiu ostentar a própria negritude de forma livre, insubmissa e despudorada
Matheus Rocha, São Paulo, Sp (folhapress) - 17/10/2025 17:17:13 | Foto: Instagram da atriz
Em 1969, Zezé Motta não se reconheceu na imagem que viu refletida no espelho. À época, a atriz estava em turnê nos Estados Unidos com a peça "Arena Conta Zumbi", de Augusto Boal. Uma das apresentações aconteceu no Harlem, bairro que é o epicentro da cultura negra em Nova York. Em dado momento do espetáculo, a atriz levantou o braço, cerrou o punho e gritou a plenos pulmões: "Eu sou Zumbi dos Palmares". Um detalhe, porém, não escapou à plateia.
"Nessa época, eu usava uma peruca chanel lisa. Você já imaginou Zumbi dos Palmares de peruca lisa?" Para os militantes do Harlem, era realmente difícil de imaginar. Ao final da sessão, eles abordaram Boal e lançaram à queima-roupa: "O que aquela mulher alienada está fazendo na sua peça?" Ao saber do imbróglio, a atriz percebeu que estava escondendo as próprias origens. "Quando cheguei ao hotel, deixei a peruca de lado, lavei a cabeça e um blackzinho apareceu. Esse banho foi o meu batismo."
A partir dali, Zezé decidiu ostentar a própria negritude de forma livre, insubmissa e despudorada. É com esse mesmo orgulho que ela chega aos 60 anos de carreira como um nome central para a cultura brasileira. Ao longo dessas seis décadas, encarnou personagens marcantes na TV, no teatro e no cinema, virou voz ativa contra o racismo e pavimentou o caminho para artistas negros que vieram depois.
Toda essa trajetória é celebrada agora na peça "Vou Fazer de Mim um Mundo", o primeiro monólogo de sua carreira. Após passar por Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, o espetáculo é apresentado em São Paulo, no CCBB, o Centro Cultural Banco do Brasil.
Com dramaturgia e direção de Elissandro de Aquino, a peça é uma adaptação de "Eu Sei Por que o Pássaro Canta na Gaiola", livro em que a poeta Maya Angelou faz um retrato de sua vida sob a segregação racial dos Estados Unidos. No espetáculo, Zezé não apenas dá voz ao texto, mas também canta músicas de artistas como Seu Jorge, Luiz Gonzaga e Luiz Melodia.
Ao ver a atriz entoar "A Carne" ou "Assum Preto", a impressão é que ela personifica o pássaro engaiolado de que fala Maya Angelou em seu livro. De certa forma, essa imagem serve de síntese para a própria vida da artista, alguém que apostou na arte e na beleza para resistir às prisões simbólicas impostas pelo racismo.
Uma dessas amarras é a ideia de que atores negros devem ficar restritos a papéis subalternos. Zezé se deu conta desse problema ainda como estudante do Tablado, escola de teatro no Rio de Janeiro. Quando contou que havia se matriculado no curso, uma ex-vizinha desdenhou. "'Não sabia que precisava de curso para fazer empregada doméstica', ela me disse. Na hora, fiquei furiosa, mas depois entendi por que ela disse isso."
Após se destacar em peças como "Roda Viva", de Chico Buarque e José Celso Martinez Corrêa, ela estreou na teledramaturgia em 1968, na novela "Beto Rockfeller", da extinta TV Tupi. Interpretou uma empregada doméstica, o primeiro de vários convites para encarnar essas profissionais. "Não tenho nada contra dar vida a empregadas. O problema é que elas não tinham participação na história. Apenas abriam porta e fechavam porta. Diziam sim, senhor, e sim, senhora", afirma a atriz. "Queria mostrar meu dom e tudo o que aprendi, mas não tinha chance."
Ela achou que teria essa oportunidade em 1977, quando foi convidada para integrar o elenco de uma adaptação para a TV de "Feliz Aniversário", conto de Clarice Lispector. "Peguei o roteiro e comecei a ler, empolgada, no táxi. De repente, vi que estava sendo convidada para servir doces em uma festa. Aí falei: 'Chega. Não quero mais isso para a minha vida."'
Decidiu recusar o papel, atitude que muita gente considerou um risco profissional. Zezé, porém, bancou a decisão. "Se não desse um basta naquilo, ficaria para o resto da vida servindo docinho em festa."
Os convites para atuar na teledramaturgia de fato diminuíram de forma momentânea, mas ela se reinventou e passou a apresentar um programa jornalístico na TV E. Em 1984, o hiato chegou ao fim quando encarnou a exuberante Dorinha, em "Transas e Caretas", da TV Globo. No mesmo ano, foi escalada para viver aquele que seria um de seus papéis de maior destaque nas novelas.
Em "Corpo a Corpo", trama de Gilberto Braga, ela encarnou uma arquiteta que sofre racismo da família do namorado, interpretado por Marcos Paulo. O preconceito, contudo, extrapolou a ficção e foi parar na realidade. "As pessoas diziam que era uma humilhação para ele beijar uma negra. Teve um cara que falou que lavaria a boca com água sanitária se a televisão o obrigasse a me beijar", lembra a artista. "Apesar disso tudo, nunca passou pela minha cabeça desistir."
Ataques racistas a atrizes negras não ficaram no passado. Bella Campos, a Maria de Fátima de "Vale Tudo", condenou comentários preconceituosos direcionados à sua personagem. Gabz disse que iria entrar na Justiça após ser alvo de racismo nas redes sociais quando protagonizou "Mania de Você".
Para Zezé, situações como essas são o retrato de um país que ainda se ressente de ver mulheres negras no protagonismo. "As pessoas ainda não se acostumaram. Eu sou do tempo em que se pregava democracia racial no Brasil, mas nunca fomos racialmente democráticos. Racismo não cabe numa democracia."
São palavras de alguém que viveu uma das protagonistas mais emblemáticas do cinema nacional. Em 1976, ela interpretou Xica da Silva, no filme homônimo de Cacá Diegues. Deu vida a uma escravizada que vence o cativeiro para virar a grande dama de Diamantina. "Foi um divisor de águas. Eu era uma atriz já respeitada, mas não era popular. Depois do filme, fiquei conhecida no Brasil e no mundo."
No mesmo ano em que a produção foi lançada, Zezé fez um curso sobre cultura negra com a intelectual Lélia Gonzalez. À época, a atriz sentia que precisava de mais repertório teórico para falar sobre racismo.
Logo na aula inaugural, Gonzalez fez um pedido à turma. "Sei por que vocês estão aqui, mas já não há tempo para lamúrias. Temos que arregaçar as mangas e virar esse jogo.'"
É o que Zezé tem tentado fazer desde então. Em 1984, criou o Cidan, o Centro de Informação e Documentação do Artista Negro, para facilitar a escalação desses profissionais. A iniciativa foi decisiva para o aumento da diversidade na dramaturgia, por ter desmontado o mito de que havia poucos atores negros no Brasil.
Aos 81 anos, ela tenta desmistificar a ideia de que mulheres devem se recolher quando chegam à velhice. Zezé não apenas segue ativa nos palcos como acumula trabalhos na publicidade -área que costumava ser refratária a mulheres negras. Nos últimos anos, ela já foi o rosto de marcas como Vichy, L'Oréal, Avon e Natura.
"Nunca pensei em me aposentar. Quero ter espaço para continuar exercendo a minha profissão. Hoje, coloco os joelhos no chão e agradeço a Deus por todas essas conquistas."
VOU FAZER DE MIM UM MUNDO
- Quando Sex., às 19h. Sáb. e dom., às 17h. Até 30 de novembro
- Onde CCBB - r. Álvares Penteado, 112, Centro
- Preço R$ 30
- Classificação 16 anos
- Elenco Zezé Motta
- Direção Elissandro de Aquino
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