Presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, Adão Pretto Filho, lança Relatório Lilás após 10 anos
Por fabiana Reinholz - Portal Bdf - 19/10/2025 11:56:25 | Foto: Entre janeiro e setembro deste ano, o estado registrou 57 feminicídios consumados e 205 tentativas - Foto: Paulo Roberto Silva
Após mais de 10 anos, o Relatório Lilás volta a ser publicado no Rio Grande do Sul, em sua terceira edição. O documento reúne análises e dados sobre a violência contra as mulheres no estado e propõe caminhos para o fortalecimento de políticas públicas. Em entrevista ao Brasil de Fato RS, o deputado estadual Adão Pretto Filho (PT), presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH) da Assembleia Legislativa, fala sobre as motivações da retomada, os principais resultados e os desafios no enfrentamento à violência de gênero.
Segundo o parlamentar, a decisão de retomar o Relatório Lilás foi impulsionada pelo aumento dos casos de feminicídio no estado, especialmente após o feriadão de Páscoa deste ano, quando 11 mulheres foram assassinadas. “Mesmo diante de uma propaganda de diminuição dos índices de violência, os casos contra as mulheres não cedem. As instituições estão dispostas a fazer esse enfrentamento, mas precisamos de políticas públicas eficientes e investimento”, afirmou.
Entre janeiro e setembro deste ano, o estado registrou 57 feminicídios consumados e 205 tentativas, conforme dados oficiais do Observatório Estadual da Segurança Pública do RS. Isso significa que, em média, uma mulher foi assassinada a cada cinco dias, enquanto quase uma tentativa de feminicídio ocorreu por dia.
Os casos de ameaça seguem sendo os mais frequentes entre as ocorrências de violência contra mulheres, com 23.271 registros no período, o equivalente a cerca de 85 ameaças por dia. Em seguida aparecem os casos de lesão corporal, que somaram 13.155, representando aproximadamente 48 mulheres agredidas fisicamente a cada dia. No mesmo período, foram registrados 1.714 casos de estupro, o que corresponde a seis casos por dia.
Conforme apurado pela GZH, 74 pessoas ficaram órfãs desde o início do ano, sendo 42 delas, crianças ou adolescentes. Segundo levantamento da Lupa Feminista até o dia 9 de outubro foram registrados 64 feminicídios.
O deputado destaca que transformar as recomendações do relatório em políticas públicas efetivas passa por reconhecer o problema como uma questão estrutural. “A violência contra a mulher deve ser encarada como uma epidemia em nossa sociedade. Vivemos numa cultura machista e, se não falarmos abertamente sobre isso, estaremos sendo coniventes. Precisamos introduzir o tema na educação, dialogar com os jovens e criar uma nova mentalidade”, afirmou.
Segundo Adão Pretto Filho, a decisão de retomar o Relatório Lilás foi impulsionada pelo aumento dos casos de feminicídio no estado – Foto: Paulo Roberto Silva
Nova Secretaria
Pretto recorda que, em 2013, quando o relatório foi lançado pela primeira vez, o Rio Grande do Sul contava com uma Secretaria de Políticas para as Mulheres. “A extinção dessa secretaria foi um grande retrocesso, pois descentralizou os investimentos e enfraqueceu o papel do Estado nessa pauta”, avaliou. Para ele, a recente recriação da pasta é um passo importante, mas precisa vir acompanhada de recursos e ações concretas. “Espero que não seja apenas de fachada e que tenha orçamento para investir, sobretudo em campanhas de conscientização sobre a violência contra a mulher.”
A CCDH tem atuado de forma articulada com movimentos de mulheres e outros poderes públicos. “A Comissão acaba sendo o recurso que muitas mulheres têm para trazer o tema da violência ao Parlamento, e não se trata apenas de violência física, mas também psicológica, patrimonial e institucional. O próprio Relatório Lilás é resultado de uma parceria com a Frente Parlamentar de Homens pelo Fim da Violência Contra a Mulher”, explicou. O parlamentar adiantou ainda que novas ações estão previstas até o final do próximo ano, incluindo parcerias com a Secretaria das Mulheres.
Violência estrutural
Para Pretto, reconhecer a violência de gênero como estrutural implica uma responsabilidade direta do Estado e do Parlamento. “Vivemos num sistema machista, e é papel do poder público criar as condições para mudar essa cultura. As deputadas deram um exemplo de união ao pressionar o governo pela recriação da secretaria, e isso deixou um recado importante. Acredito que o terreno fértil para a mudança está na educação. Tenho duas filhas pequenas e me pergunto todos os dias qual futuro quero deixar para elas.”
Em meio ao aumento dos feminicídios, o deputado reforça seu compromisso com a pauta. “Seguirei incessantemente lutando por uma sociedade mais justa entre homens e mulheres. Queremos trazer a Casa da Mulher Brasileira para o estado e estamos promovendo debates em locais de presença majoritariamente masculina, porque os homens precisam participar dessa mudança”, disse.
A 3ª edição é resultado de uma construção coletiva entre a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, autoridades, forças de segurança, instituições públicas, universidades, movimentos de mulheres e organizações da sociedade civil. O lançamento do relatório aconteceu na última sexta-feira (10).
Composto por 17 artigos de especialistas e entidades que são referência no tema, o novo Relatório Lilás será lançado em diferentes regiões do estado. “Queremos provocar a sociedade, ampliar o debate e usar o relatório como ponto de partida para criar, rever e fortalecer políticas públicas. É uma construção coletiva, mas precisamos de recursos e investimentos em campanhas consistentes de conscientização”, concluiu o parlamentar.
“Tudo o que está fora da ‘ordem’ do doméstico cai na vala comum, mesmo quando há desprezo pela condição feminina”, ressalta jornalista – Foto: Paulo Roberto Silva
Subnotificação
Um dos artigos que compõem o Relatório Lilás, divulgado pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, é assinado pelo Observatório de Feminicídios Lupa Feminista. De acordo com o estudo, o número real de mulheres assassinadas no estado é significativamente maior do que o divulgado pelo governo.
Enquanto a Secretaria de Segurança Pública registrou 72 feminicídios em 2024, o levantamento independente realizado pelo observatório, em diálogo com a Força-Tarefa de Combate aos Feminicídios da Assembleia Legislativa, identificou 111 casos no mesmo período.
A discrepância, segundo a jornalista Télia Negrão, integrante da Lupa Feminista, revela falhas na classificação e no registro das mortes, que acabam mascarando a real dimensão da violência de gênero no estado. “Não se trata de provar que mais mulheres morreram, e sim de mostrar que muitos feminicídios estão sendo registrados como homicídios comuns. Isso muda completamente a natureza dessas mortes e as políticas públicas necessárias para enfrentá-las.”
De acordo com a jornalista, ao menos 30% dos feminicídios no Rio Grande do Sul não são contabilizados oficialmente, em razão de uma interpretação restrita da legislação. “No estado, só é considerado feminicídio quando há relação de intimidade entre o assassino e a vítima. Casos que envolvem lesbocídios, transfeminicídios ou crimes cometidos fora da esfera doméstica acabam ficando fora das estatísticas.”
A jornalista alerta que esse enquadramento limitado, conhecido como “encapsulamento” do feminicídio na violência doméstica, impede a formulação de políticas públicas eficazes. “Tudo o que está fora da ‘ordem’ do doméstico cai na vala comum, mesmo quando há desprezo pela condição feminina, mutilações e ataques dirigidos ao corpo das mulheres”, afirma.
Um estudo do Centro Global de Excelência em Estatísticas de Gênero da Organização das Nações Unidas (ONU), citado pelo observatório, mostra que países que restringem o conceito de feminicídio às relações íntimas tendem a subnotificar os casos e reduzir a visibilidade da violência de gênero. “Nos países que ampliaram a definição, as desigualdades de gênero e o modo de matar são reconhecidos como motivação grave. Essa leitura permite medir melhor o problema e agir de forma preventiva”, complementa Negrão.
Para ela, enfrentar o feminicídio exige mudança estrutural e cultural, não apenas repressão policial. “Achar que se combate feminicídio apenas com polícia e punitivismo é atuar sobre corpos sem vida e dilacerados. É enxugar gelo, martelar em ferro frio. Enquanto não entendermos por que as mulheres continuam morrendo no Rio Grande do Sul, continuaremos a dar respostas erradas à pergunta que nos assombra”, conclui.
A previsão é de que o Relatório Lilás esteja disponível online nas próximas semanas no site da Assembleia.
Editado por: Katia Marko
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