Gaza é um divisor de águas histórico, diz Rita Segato, especialista em violência

A antropóloga, ensaísta e ativista acaba de lançar

Gaza é um divisor de águas histórico, diz Rita Segato, especialista em violência
Gaza é um divisor de águas histórico, diz Rita Segato, especialista em violência

Foto: Júlia Seabra/UnB Agência

A antropóloga, ensaísta e ativista acaba de lançar

Sylvia Colombo, Buenos Aires, Argentina (folhapress) - 30/01/2025 15:39:45 | Foto: Júlia Seabra/UnB Agência

Rita Segato, 73, é uma das intelectuais mais livres e com um dos olhares mais abrangentes de toda a América Latina atualmente. A antropóloga, ensaísta e ativista acaba de lançar "As Estruturas Elementares da Violência" pela Bazar do Tempo.

Segato estuda a violência contra as mulheres há mais de 30 anos, e não se trata apenas de um trabalho de entrevistas e relatos de sobreviventes. Ela estuda os grandes massacres e conflitos da região para mostrar, entre evidências fósseis, que as principais vítimas são mulheres.

Tanto nos enfrentamentos entre guerrilhas colombianas como no genocídio indígena na Guatemala -que já levou à morte pelo menos 200 mil pessoas- ou na guerra civil de El Salvador -que matou 75 mil-, as mulheres são sempre maioria entre os mortos.

"Por que estupram as mulheres e não os homens? Por que as torturam, as escravizam? Por que as despedaçam?", questiona Segato.

No livro, ela analisa a lógica da violência de gênero, apresentando-a como parte integrante das engrenagens simbólicas que sustentam as relações de poder na sociedade patriarcal. Para a autora, "é importante estar no campo, depois tomar distância e sentir o campo de trabalho de outra perspectiva".

Apesar de usar os instrumentos da antropologia, sua obra contém alta voltagem política, uma vez que a violência surge de modo a organizar as hierarquias de gênero e a manutenção da ordem na sociedade.

Em tempos em que a palavra "livre" tem sido usada no Brasil ou na Argentina para designar a extrema direita, Segato a exerce de modo mais significativo, em ideia oposta.

"Sou de uma escola antropológica em que não se vai a campo com uma pergunta formulada, mas se espera que o campo as forneça para nós. Ou que nos habilite a formar um ponto de partida para a nossa reflexão", diz à Folha.

Nos últimos tempos, ela tem refletido sobre a questão de Gaza e aponta o conflito no Oriente Médio como "um divisor de águas histórico".

Segato cita Francesca Albanese, a relatora das Nações Unidas para territórios palestinos ocupados, para apontar o conflito como um "último prego no caixão da Carta de Direitos Humanos da ONU".

Segundo ela, se trata "uma nova 'Carta', pois é um espetáculo de genocídio exibido sem pudor e sem reservas ante os olhos do mundo inteiro". "Essa nova declaração enuncia que não existe mais o Estado de Direito, a 'ficção jurídica' na que sempre acreditamos. E que a lei, hoje, é o poder de morte."
Vale notar que as bravatas do Trump e as condutas que tem exibido desde a posse -como a expulsão de imigrantes ou o expurgo de contratados a partir de programas de diversidade-, não são outra coisa que não espetáculos de poder e arbítrio.

Segundo Segato, mais do que medidas de governo, o que o mundo testemunha é uma exibição de força, respaldada por um poder de morte imbatível e sem precedentes na história, que se alinha com a mensagem sobre Gaza.

Segundo ela, é uma nova "Carta de Não Direitos", "uma 'declaração de estado de arbítrio' e uma proclamação, agora sem dissímulo, de que o poder de morte é a única lei". Sobre o cessar-fogo ou, "quem sabe, a mera trégua que acaba de ocorrer", não se pode dizer que Israel "ganhou ou perdeu" nada.

"Escrevi há muitos anos que, ainda quando um genocídio praticamente extermina um povo quase por completo, esse ato de conquista não se transforma em vitória se não consegue uma 'vitória moral'. Ou seja, se não se alcança a supremacia moral na narrativa e perante os olhos da humanidade. Isso Israel obviamente não conseguiu e não poderá nunca alcançar."
Segato é uma profissional extremamente engajada. Já deu aulas na Universidade de Brasília, de 1985 a 2010, é titular da Cátedra Unesco de Antropologia e Bioética e coordenadora da Cátedra Aníbal Quijano do Museu Reina Sofía, na Espanha. Aqui e na Europa se transformou numa referência dos estudos sobre o decolonialismo.

Seu trabalho no campo inclui perícias que estudam a violência da mulher em distintas situações. Seu amplo trabalho na Guatemala serviu como evidência de que os militares haviam cometido genocídio na região durante a guerra civil de 1960 a 1996. Ali foram enumerados crimes contra mulheres que incluíam escravidão sexual e doméstica, torturas e maus tratos, em caso que levou aos tribunais.

Também trabalhou na fronteira do México com os Estados Unidos para expor que, além da violência entre gangues e os conflitos entre indocumentados e agentes de segurança, a maioria das vítimas de abusos físicos eram mulheres.

"O patriarcalismo explícito e criminoso das ultradireitas traz um benefício. O fato de que toda a frente política que comunga no projeto da concentração da riqueza converge hoje no intento de aniquilação das reivindicações das mulheres e das sexualidades divergentes tem um lado B positivo: nos mostra a magnitude da ameaça que representamos", diz a autora.

"O desassossego com que colocam seus rebanhos obedientes nas ruas para gritar consignas que não tem o menor sentido é uma clara demonstração de que os think tanks que consultam já lhes advertiram do poder de mudança de rumo histórico que nossas demandas trazem. O patriarcalismo e a misoginia nos setores que chamamos 'de esquerda' são tanto quanto abomináveis e, sobretudo, perigosos para o projeto de mudar o mundo", afirma.

"No machismo e, nos meus termos, no corporativismo masculinista das cabeças políticas, intelectuais, artísticas e midiáticas da assim chamada esquerda, ou seja, nas cumplicidades dos donos 'progressistas' das decisões em todos esses campos, devemos buscar as razões do fracasso de todos os processos de mudança histórica que a humanidade tentou."
Segato conta que quase não usa mais as noções de "esquerda" e "direita" em suas palestras e textos. "Representantes de 'esquerda' já traíram demais, e essas traições sempre, no fundo, se encontram ancoradas no solo, na matriz patriarcal à qual obedecem, não poucas vezes, com o apoio deslumbrado de mulheres que não tem aprofundado uma 'consciência de gênero'. Olhem para Evo Morales, para Daniel Ortega."
Sobre o Brasil de hoje, que Segato conhece muito bem, considera que "há uma hegemonia que desenha uma nação endogâmica, de circulação centrípeta, que olha para o umbigo, e isso lhe faz mal".

Daí, considera, "veio o delírio, num passado próximo, de que seria possível constituir-se numa espécie de sub-império sem levar a sério as indispensáveis contribuições dos países em torno de si". Foi um erro fatal, segundo ela.

"Há uma arrogância originada na ignorância ou cegueira do Brasil sobre o mundo em volta, que faz com que não possa chegar ao que poderia ser sua vocação de destino pela sua extensão, pluralidade de povos e deslumbrante diversidade de formas de existência em seu extenso território, assim como a grandeza dos seus recursos."
Segato chegou ao Brasil em 1976, para realizar um trabalho no Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais do Recife. "Foi aí conheci um povo do Brasil com suas cantorias, boiadas, frevos e maracatus do nordeste; cocos, forró e ciranda, e o impressionante repertório da tradição religiosidade nagô do Recife e fiquei apaixonada. Logo me aconteceu de descer a Brasília e conhecer a elite, e inevitavelmente me decepcionei. Eram, sem dúvida, dois Brasis."
"Nesse sentido é um país de condução marcadamente eurocêntrica, um país para o qual sempre tento achar a tradução de uma palavra castelhana que minha mãe usava muito: 'tilingo'. Muito recentemente encontrei a tradução mais aproximada: um país 'deslumbrado' e, portanto, com muita dificuldade para se salvar de sua existência periférica, que o fragiliza constantemente. Entende a criatividade como moda, e copia, copia, copia o que mal entende como prestigioso, sem ter coragem para caminhar com os próprios pés."

AS ESTRUTURAS ELEMENTARES DA VIOLÊNCIA
- Preço R$ 89 (384 págs.)
- Autoria Rita Segato
- Editora Bazar do Tempo
- Tradução Danú Gontijo

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