Por Henrique Pizzolato: O legado de Leão e o chamado urgente por trabalho e justiça
Por Henrique Pizzolato: O legado de Leão e o chamado urgente por trabalho e justiça

Por Henrique Pizzolato* - 12/05/2025 07:05:45 | Foto: Henrique Pizzolato: Reprodução Youtube / www.vaticannews.va

A escolha de um nome para guiar o pontificado nunca é um ato isolado, mas sim um elo intencional com a história, um aceno a legados que moldaram a trajetória da Igreja e sua interação com o mundo. A ascensão de Leão XIV ao trono de Pedro nos remete, de forma quase imediata, à figura marcante de Leão XIII. No ocaso do século XIX, em meio às profundas transformações da Revolução Industrial, foi ele quem ousou confrontar as novas desigualdades com a encíclica Rerum Novarum.

Naquele contexto de emergente produção fabril e suas inerentes injustiças, a voz da Igreja se fez ouvir em defesa da dignidade intrínseca do trabalhador, reconhecendo seus direitos fundamentais e a importância da organização coletiva através dos sindicatos. Esse marco histórico reverbera em nossos dias, em um mundo que, ironicamente, parece reviver muitas das tensões de outrora.

Assim como a eleição de Francisco, um jesuíta que abraçou o espírito de simplicidade e serviço de São Francisco de Assis, representou um movimento para recentralizar a atenção da Igreja nos pobres e marginalizados, a adoção do nome Leão por seu sucessor sugere uma renovada preocupação com o universo do trabalho e as crescentes disparidades sociais que o afligem.

O pontificado de Francisco lançou as bases para uma análise crítica das feridas de um sistema globalizado que, com frequência alarmante, subordina a dignidade humana à lógica implacável do lucro. A chegada de Leão XIV ao papado acena para uma possível intensificação desse olhar, um chamado para revisitarmos as questões cruciais levantadas por seu predecessor homônimo, adaptando-as aos intrincados desafios do século XXI.

O panorama global contemporâneo clama por atenção e ação. A exclusão social se expande, lançando sombras sobre vastas parcelas da população. A concentração de renda atinge níveis alarmantes, expondo a obscena disparidade entre o topo e a base da pirâmide social. A dignidade humana é corroída pela humilhação e pela sistemática perda de direitos.

Paralelamente, as organizações de trabalhadores enfrentam um enfraquecimento preocupante, um fenômeno que coincide com a ascensão de discursos extremistas, que frequentemente encontram terreno fértil na frustração e no desespero daqueles que se sentem abandonados. Essa conjuntura inquietante ecoa os tempos turbulentos que marcaram o pontificado de Leão XIII, um período de guerras, revoluções e da exploração brutal inerente a uma industrialização desregulamentada.

Diante desse cenário complexo, a esperança que se deposita na figura de Leão XIV reside na expectativa de que ele se torne um eloquente porta-voz daqueles que, com seu trabalho, produzem a riqueza do mundo, mas são sistematicamente excluídos de seus benefícios.

Que sua liderança moral e espiritual convoque a comunidade internacional, os líderes políticos e as elites econômicas a confrontarem a iniquidade da desigualdade e a urgência inadiável de restaurar a dignidade do trabalho em todas as suas manifestações. A memória de Leão XIII nos recorda o poder transformador da palavra profética da Igreja em momentos de inflexão histórica, capaz de influenciar políticas públicas e despertar a consciência adormecida.

Os sinais que emanam da trajetória de Robert Francis Prevost, agora Leão XIV, fortalecem essa expectativa. Seu nascimento em Chicago, um histórico centro da luta operária nos Estados Unidos, parece ter inscrito em sua própria história uma sensibilidade intrínseca para as questões do trabalho e da justiça social.

Sua vasta experiência como bispo no Peru, uma nação latino-americana marcada por profundas desigualdades e pela resiliente luta de comunidades marginalizadas, certamente lhe proporcionou uma compreensão aguda das intrincadas dinâmicas de poder e exclusão que permeiam a América Latina. Sua significativa decisão de adotar a cidadania peruana para servir integralmente àquele povo é um eloquente testemunho de um profundo compromisso humano e pastoral.

A confiança demonstrada pelo Papa Francisco ao elevá-lo à posição de Prefeito do Dicastério para os Bispos, um cargo de central importância na definição da liderança eclesiástica, sugere uma convergência de visões sobre a necessidade de uma Igreja mais próxima das periferias existenciais, atenta aos clamores dos oprimidos e genuinamente engajada na construção de um mundo mais justo e equitativo. Afinal, os bispos são os pastores que moldam a ação da Igreja em suas respectivas comunidades, e sua escolha reflete a direção que se busca imprimir ao Corpo de Cristo.

A tarefa que se apresenta a Leão XIV é, sem dúvida, monumental: resgatar a centralidade da questão do trabalho no debate público global, atualizar a visão profética de Rerum Novarum para as complexidades do século XXI e inspirar ações concretas em favor dos milhões de trabalhadores que ainda hoje sofrem com a exploração, a precarização e a invisibilidade.

É imperativo que sua voz ressoe com clareza nos fóruns internacionais, nos parlamentos nacionais e nas mesas de negociação, recordando incessantemente a intrínseca ligação entre a dignidade humana e a dignidade do trabalho.

Ademais, este é um momento crucial marcado pela ascensão de movimentos políticos de extrema-direita em diversos países, movimentos que frequentemente se valem de narrativas de exclusão e intolerância. A eleição de figuras como Donald Trump e a crescente prática do lawfare, a perversa instrumentalização do sistema judiciário para perseguir opositores políticos e erodir direitos sociais e trabalhistas arduamente conquistados, compõem um cenário que exige uma resposta firme e ética. Nesse ponto de inflexão histórica, a liderança moral e espiritual de Leão XIV pode se constituir em um contraponto vital.

Sua voz, imbuída de autoridade e compaixão, tem o potencial de fortalecer uma cultura de profundo respeito pela dignidade humana, pelos pilares da democracia e pelos princípios da justiça social, oferecendo resistência às investidas autoritárias que ameaçam corroer os fundamentos de sociedades justas e inclusivas.

Que a influência de Leão XIV inspire em todos nós a coragem necessária para romper a inércia, enfrentar com determinação essas adversidades e construir, coletivamente, um futuro onde a justiça e a solidariedade prevaleçam sobre o medo e a opressão, onde o trabalho seja fonte de dignidade e realização para todos.

* Ex-sindicalista bancário; ex-presidente da CUT Paraná; ex-diretor da Previ e do Banco do Brasil; militante de Direitos Humanos e membro da Rede Lawfare Nunca Mais